Metade norte do coração
Da serração mágica que são as minhas memórias de infância saem às vezes manhãs
de inverno num colégio do Parque dos Maias, um churrasco de família no Humaitá,
em 1992, uma cirurgia de amígdalas no Hospital Conceição que o então piá de
quatro anos nem chegou a perceber. Desse mesmo baú de recuerdos resgato a
gurizada brincando na rua, o periquito enterrado no pátio da minha casa, o
velório do meu avô morto prematuramente no Hospital Cristo Redentor, a poucas
quadras do lugar onde eu nasci. Talvez porque o chão que mais pisei na vida e
também o céu que mais me tapou de sóis e chuvas tenham sido estes é que esta
parte da cidade é o lugar onde a palavra lar mais me faz sentido, esta metade
de Porto Alegre que é bem mais que uma metade.
A Zona Norte desta capital, que deu
os braços fortes que pariram a indústria do Rio Grande e que abriu caminho para
a expansão demográfica e econômica da cidade, foge sem dúvida do perfil de
lugar que figura em guias turísticos, inclusive dos próprios guias
porto-alegrenses. Mas justiça seja feita: o que falta não são encantos nesta
parte da cidade, falta é sensibilidade para que se veja a beleza destas
planícies onde se assentam imensos bairros residenciais que seguem
tranquilamente seu caminho sob o olhar atento e solitário do Morro Santana, o
mais alto de Porto Alegre, com seus mil hectares de verde puro e silencioso,
tão próximos e tão distantes do concreto. Quem vê apenas o gris da Assis Brasil
ou o descampado da Sertório com certeza tem motivos para não se admirar com
estes pagos nortistas, mas me parece lógico pensar que por mais distraído que
seja o estrangeiro-visitante não lhe deveria ser difícil imaginar a calmaria
das vizinhanças interiores, a infinidade de praças e ruas de pedra que existem
entre as grandes avenidas, que podem ser contadas nos dedos das mãos.
Esta região de relevo suave e bairros mais jovens que meus avós
abre-se também para os trabalhadores da Região Metropolitana, que diariamente
dão vigor e mão-de-obra à metrópole-mãe. A Zona Norte é caminho cotidiano de
milhares de canoenses, alvoradenses, gravataienses e outros tantos enses que
por aqui passam em busca do sustento, revelando ainda mais a vocação
democrática desta porção acolhedora de Porto Alegre.
E itens não faltariam nesta lista de
qualidades que a Zona Norte possui e geralmente sonega aos desavisados, mas o
espaço deste texto termina e me interessa mais o tranquilo descanso familiar
neste meu Jardim Planalto, onde o barulho mais frequente é o das folhas
balançadas pelo vento.
(In Tabaré #3, seção Meio a Meio,
julho de 2011).