"Que pinta tem essa gente!", confirmo logo na chegada à rua dos bares mais rai soçaite de Porto Alegre, território de grifes e vitrines elegantes, de automóveis reluzentes, de arquitetura harmônica. São nove horas da noite de sexta-feira e alcanço contente os altos do bairro Moinhos de Vento, tradicional, rico, bonito. Meu destino óbvio, tratando-se de buscar a área boêmia daquela vizinhança, é a rua Padre Chagas, que homenageia em suas placas um monge farroupilha que nem em seus mais delirantes sonhos imaginaria a região - outrora afastada do perímetro urbano - agitada e com a alcunha informal de Calçada da Fama.
Antes de pisar o pavimento elegante da Padre Chagas meus pés haviam cruzado os caminhos sombrios da Avenida Farrapos, tão próxima e tão distante, afundada na decadência de sua Art Decó em estado crítico de conservação, nas suas atividades comerciais inglórias e na fumaça dos carros que a todas as suas cores oprime. Atravessei também as poucas quadras da Floresta que separam a avenida do Moinhos de Vento, serena e vigilantemente pousado sobre o cerro Ricaldone, pequena colina onde se assentaram primitivamente os moinhos açorianos a moer o trigo que foi a gênese do bairro. A empinada lomba da Rua Félix da Cunha não havia sido severa o bastante para conter meus passos e minha determinação jornalística.
É o Mullingan, bar de declarada inspiração irlandesa, o ponto de partida da minha noite entre os abastados. O cardápio vem logo avisando, em inglês, que a vida é curta demais para que se beba cerveja barata. E eles seguem a filosofia à risca, cobrando no mínimo 10 reais pelo chope. Já a cerveja mais cara, servida em um copo modesto que acomoda pouco mais de 300 mililitros, custa 55 reais. É também no Mullingan que o garçon Vagner Esteves, 29 anos, me conta a rotina de trabalho do pub. Morador de Ipanema, Vagner se desloca cinco vezes por semana rumo à Padre Chagas, onde trabalha há 3 anos e meio, incluídos alguns períodos de ausência, em que trabalhou em outros bares. O funcionário elogia a política de pagamento praticada pelos chefes, que além do salário ínfimo de 500 reais proporciona, pela jornada de mais de 8 horas cumprida à noite, comissões que alcançam a marca surpreendente de 2000 reais mensais. O montante de 2500 reais obtido a cada mês é até 3 vezes maior que em outros bares, o que explica a longevidade do rapaz no emprego. Sobre a clientela, Vagner comenta que apesar da pose generalizada dos freqüentadores não há como se definir um padrão de comportamento, pois "alguns têm um monte de dinheiro e te tratam muito bem, enquanto outros não têm nada e te tratam mal". A estupidez e a arrogância, pensei, não tem classe social nem lar, dá o ar de sua graça nos mais variados lugares, indiscriminadamente.
Quando indagado sobre possíveis sucedidos excêntricos no bar, o garçom responde que além de uma e outra extravagância eventual motivada pelo álcool, como discussões de namorados com direito a plateia ou visitantes europeus com leves tendências nudistas, pouco acontece de memorável no comportado ambiente. Nostálgico, penso nas infinitas noites da Cidade Baixa, carro-chefe da boemia porto-alegrense, onde o imprevisto é regra e a surpresa teima em brindar seus assíduos, com a beleza ou horror da vida ao ar livre, sem amortecedores.
Já satisfeito com meu litro de Guinness - cerveja irlandesa tão antiga quanto Porto Alegre - pago a conta com tristeza e saio às ruas. O movimento ainda não é intenso, apesar de o relógio marcar as dez horas de uma noite de sexta, horário boêmio por vocação nesta cidade. Caminho em direção à extremidade oposta da pequena rua, a três quadras dali. No curto trajeto voltam a tocar meus olhos as imagens de vitrines iluminadas, carros luxuosos, gente sentada em bares confortáveis e caríssimos, jacarandás preparando sua festa primaveril. Confiro os preços de um bar acolhedor, com mesas na calçada. A música ambiente, a decoração à meia-luz, o atendimento servil e os quitutes aparentemente saborosos do lugar custam muitas horas do meu trabalho, tempo que não me dispus a sacrificar por tão pouca interação, tão ínfima possibilidade de aventura. Sigo adiante e o neon das placas de um clube golpeia-me a vista. Atento e esperançoso, detenho-me. Há uma escada que conduz ao piso superior, donde vem a música que escuto, sem prazer, mas animado. Entre os degraus e a escada, porém, estão prostrados dois enormes obstáculos: uma tabela de preços e um segurança antipático e inquieto com minha hesitação frente à porta. Resignado, executo outro par de passos. Vejo gente moderninha portando taças de espumante frente a uma loja aberta de eletrônicos. Seria uma inauguração? Poderia eu por fim emborrachar-me? Misturo-me ao grupo, simulando intimidade com o ambiente, e vejo que a festa começa seu ocaso. Guardam-se cadeiras e garrafas vazias. Guardo eu minhas intenções alcoólicas e parto rumo ao fim da rua e da noite na Padre Chagas. Pensando na madrugada e nos encantos da Avenida Independência, caminho em direção a bares mais familiares e acessíveis e dou por finda minha jornada no Moinhos de Vento, satisfeito ao menos com a observação realizada e com a boa cerveja negra que ainda acaricia minhas papilas gustativas.